quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

[conto] A Chuva



Está chovendo.
Mas não está chovendo normal, não está chovendo simplesmente muito... Acho que vamos todos morrer.

Começou em algum momento da noite de ontem, mas eu não sei quando. Acordei hoje cedinho ouvindo o som das gotas batendo em minha janela e os trovões ecoando pela cidade. Moro em uma cidade grande, sabe? Daquelas que são destruídas primeiro nos filmes de ação e ficção.
Fiquei na cama mais cinco minutos hoje cedo. Fechei os olhos e puxei o cobertor mais para perto e encolhi um pouco as pernas. É algo que faço e imagino que todos os outros seres humanos também façam. Pensei em ficar em casa, ligar para meu chefe dizendo que estava com outra dor de cabeça daquelas... Mesmo em um dia como aqueles, ele não desconfiaria. Minhas dores de cabeça têm se tornado um inferno cada vez mais constante. Então criei coragem e me levantei para enfrentar esse dia escuro.
Tomei meu café olhando pela janela. Estamos no verão e é comum que essas chuvas fortes nos atinjam... Mas não gosto que o dia comece assim. Me arrumei, coloquei meu sapato e abotoei minha camisa. Dia normal.
Entrei no elevador do meu prédio e dei de cara com o vizinho de cima. Ele meneou a cabeça em sinal atual de "bom dia, vizinho!". Ficamos em silêncio enquanto o elevador descia dois, três andares.
- Ouviu os trovões ontem?
Não. Eu não tinha ouvido nada. Durmo como uma pedra depois que comecei a tomar aqueles remédios. Mesmo assim concordei com a cabeça, desinteressado. Não queria bater papo às 6 da manhã.
- Eu nunca tinha ouvido tantos na mesma noite. -continuou o tagarela- Acho que também ouviu minha filha chorando, então te devo um pedido de desculpas.
- Não se preocupe.
- Ela ficou assustada com os trov...
- Não se preocupe. -repeti e coloquei fim à conversa.
Descemos os dois no estacionamento. Minha vaga fica mais próxima ao elevador, então entrei no meu Hyundai e logo me enfiei no estreito corredor que levava os carros para a rua. O portão do prédio se abriu e então eu vi que a chuva continuava forte. A água corria como uma pequena corredeira na sarjeta. Era a primeira vez que eu via uma coisa dessas naquela rua.
Saí com o carro imaginando que algumas pessoas ficariam em casa, então o trânsito poderia estar menos insuportável. Minha ilusão não durou muito. Assim que cheguei à avenida do bairro, tudo estava parado. Demorou um pouco para que eu me aproximasse do acidente que tinha causado todo o trânsito. Um carro batido no outro e os dois condutores discutindo debaixo de uma marquise da calçada.
Continuei meu caminho, mas é claro que a cidade estava um inferno. Xinguei tudo e todos dentro do meu carro, sabendo que tudo e todos não estavam ouvindo. Liguei o rádio para ouvir música, mas o sinal estava terrível. Desisti.
Cheguei no meu trabalho um pouco atrasado. Agradeci aos céus pelo estacionamento da empresa ser no subsolo, portanto eu não precisava tomar chuva. Subi pelo elevador sem ninguém para me encher o saco nos 17 andares que me separava do chão.
Suspirei quando percebi que meu chefe também estava atrasado. Aquele bosta. Se fosse o contrário, ele estaria tamborilando os dedos na mesa, me olharia com aqueles olhinhos de tartaruga e alguma coisa estúpida enquanto olhava para o próprio relógio.
Fui para minha mesa, liguei o computador e coloquei os fones de ouvido. O mundo que se explodisse até a hora de voltar pra casa.



Eram umas 10 e pouco da manhã e a chuva continuava forte, sem trégua, sem descanso. Uma das meninas saiu para almoçar e voltou cinco minutos depois aos berros:
- O estacionamento está enchendo d'água!
Me levantei com um pulo. Não iria perder meu carro... se perdesse, poderia processar a empresa? Talvez não, então era melhor não arriscar. O elevador demorou e quando chegou, estava cheio. Pedi licença e me enfiei lá dentro junto com outros três colegas de trabalho.
- Ah, cara... -resmungava um.
Quando chegamos ao último andar, vi a água. E os carros. E depois um ratinho correndo de um lado para o outro do estacionamento. O lugar estava com quase dez centímetros d'água. Xinguei mentalmente a empresa e afundei meus pés na água há poucos metros.
Liguei o carro e saí para a rua. O mundo estava desabando. As luzes dos postes ainda estavam ligadas e eu dei algumas voltas nos quarteirões próximos até achar um lugar mais elevado. Um rapaz estava na chuva e me indicou uma vaga. perfeito. Estacionei e saí de volta para a chuva.
O rapaz corria em minha direção.
- Quer que dá uma olhadinha?
- Por favor. -eu disse- Te dou uns trocados quando voltar.
Era mentira. Não ia dar nada pra aquele drogadinho de merda. Quer dinheiro? Acorde cedo e trabalhe! Se eu consigo, por que ele não? E outra: se eu dissesse a verdade, ele iria furar meus pneus e riscar a pintura. É verdade. Eu sei disso, você sabe disso e o drogadinho sabe disso. É uma verdade universal. Eu finjo que sou legal, ele finge que é honesto. O mundo é um lugar lindo.
Não adiantava me esgueirar por lugares que a água não alcançava. Na primeira rua que atravessei já estava encharcado.
Voltei pro meu trabalho com as meias fazendo "ploc, ploc, ploc" e os cabelos pingando. Fui até o banheiro, tirei a roupa. Não um banheiro compartilhado, e sim um daqueles individuais. Tentei secar um pouco minha camisa e a calça usando o ar quente do secador de mãos.Não adiantou muito, mas pelo menos não estava mais gelado. Joguei a água que estava dentro do sapato na pia e espremi minhas meias. Voltei para minha mesa descalço, rezando para ninguém me questionar. As pessoas não se olham muito por aqui, então ninguém me viu.
Deixei meu sapato e minhas meias no chão, do lado do gabinete do computador, em baixo da minha mesa. Fiquei com os pés descalços por toda a tarde.
Eram duas e pouco quando alguém ligou uma rádio jornalística.
- ...Obrigado Alana, -disse o locutor- Vale relembrar que o serviço de trens está cancelado e os principais terminais de ônibus estão alagados. Agora informações da zona oeste com Ricardo Duarte: duas árvores caíram na ligação leste-oeste, trancando completamente o trânsito...
Que merda.
As notícias sobre os desastres da chuva continuaram por mais meia hora. Aparentemente a cidade estava parada, alagada e muita gente já tinha morrido. Alguns pela queda de árvores, dois caíram no rio e uma meia dúzia com raios. Aquilo era assustador.
Então às três horas a internet parou. Alguns dos funcionários xingaram em voz alta por perderem arquivos não enviados. Eu voltei para meu serviço e ignorei os funcionários que terminavam o expediente mais cedo.
Eu deveria ter saído com eles quando tive chance.


Às quatro e meia da tarde a energia acabou. Só estavam no andar eu e mais seis funcionários. Dois deles disseram que estavam indo e simplesmente saíram. Sobraram cinco e eles decidiram esperar mais um pouco pra ver se a luz voltava ou a chuva parava. Eu dei uma volta no andar e encontrei uma janela que nunca tinha visto - de lá era possível ver a rua. As janelas do meu bloco mostravam apenas outros prédios.
A rua estava alagada. A água arrastava lentamente um carro que eu espero que estivesse vazio, porque ele logo tombou para o lado e em seguida ficou de cabeça pra baixo. Calculando pelo carro, a água tinha subido mais de um metro. 
Também vi os raios atingindo os prédios ao redor. Todos tinham para-raio, então estávamos salvos - disso, pelo menos. Eu estava com medo. Pensei em ligar para meus pais e dizer que eu estava bem - com medo, mas bem. Pensei em ligar para algum amigo... Mas quando peguei o celular, não tinha sinal. Mas que merda.
Anoiteceu bem rápido - mesmo que no horário de verão.
Ainda olhando para a janela, me assustei quando o primeiro granizo acertou o vidro. Quase caí pra trás, pra dizer a verdade. Eram algumas poucas pedras, mas faziam um som forte quando batiam no vidro. 
Mais um cara tinham ido embora e agora os quatro restantes estavam juntos, com um celular ligado provendo luz, sentados longe da janela. Então o vento começou...
O vidro estalava na parede e as paredes... elas faziam um barulho estranho. O prédio poderia cair e eu estava no 17º andar. Como homens podem ser tão estúpidos? Meu pequeno surto assustou os outros e nós descemos as escadas correndo. 
Um deles caiu e rolou alguns degraus. Usando a luz do celular percebemos que o raiz dele sangrava e ele gritava de dor segurando o braço. Ajudamos o cara a se levantar e meio que arrastamos ele pelo resto do caminho.
Estávamos no terceiro andar quando afundei meu sapato seco e um monte d'água. Ergui a luz do celular e percebi que estava tudo alagado. 
- Isso não é possível... É o TERCEIRO ANDAR! -disse um dos caras.
Era possível porque estava acontecendo e meu pé molhado era a prova disso. Recuei dois degraus e fiquei olhando pra água. Se tinha água no terceiro andar, como diabos eu ia sair do prédio?
As janelas. A resposta me veio antes de terminar as perguntas. 
Subimos de volta para o quinto andar e começamos a estudar a possibilidade de sair pela janela. A rua era um breu total e decidimos sacrificar um celular para nos certificarmos de onde estava a água. Tudo era possível. Talvez o celular se estatelasse no asfalto lá em baixo... 
Quando abrimos o vidro, um vento fortíssimo nos empurrou para trás. A chuva começou a entrar e eu fui me aproximando com o celular em mãos. O aplicativo de lanterna estava ativado, então eu parecia segurar uma bola de luz... 
Joguei a bola de luz para baixo e ela afundou alguns centímetros na água que estava há menos de dez metros de mim. Em seguida a bolinha de luz foi arrastada com uma velocidade incrível pela correnteza. Se pulássemos, a correnteza nos levaria. 
O prédio soltou um gemido do fundo de suas entranhas. Me encolhi sentindo o gosto da morte. Um dos caras começou a rezar em voz alta e o outro disse que Deus tinha prometido que não ia fazer mais isso. Eles acham que aquilo é o dilúvio. Talvez seja.
Subimos mais alguns andares ouvindo toda a estrutura do prédio pedindo socorro. Chegamos ao 13º andar e paramos. Estamos aqui agora. Estou escrevendo isso porque... Bem... Acho que vamos todos morrer.



7 comentários:

  1. Respostas
    1. *abraço*
      que bom que gostou, cara! De verdade
      Eu também estou super apaixonada por esse meu conto <3

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  2. Cara, foi um texto TÃO FANTÁSTICO que eu quase senti a chuva, apesar de estar fazendo quase 40° aqui na minha cidade. Mas poxa, parar justamente no 13° andar? ahah

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    1. Então.. Esse texto teve como inspiração uma chuva que fez o prédio onde trabalho estalar (juro). Nunca senti um medo com aquele. Foi uma aceitação de possível morte.
      Eu trabalho no 13º andar e o prédio vai até o 16º. Pensei com meus botões: não vou descer daqui porque se o prédio cair, os que estão no andar de cima vão ser resgatados primeiro. Então me sentei em minha cadeira e respirei fundo.


      (e muito obrigada!!)

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  3. Eu tipo necessito saber o que acontece depois! Cara, eu geralmente não leio textos grandes assim (sem ser livro) ainda mais na internet! Você me prendeu super nesse texto. Escreve um livro, por favor !

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  4. Eu tipo necessito saber o que acontece depois! Cara, eu geralmente não leio textos grandes assim (sem ser livro) ainda mais na internet! Você me prendeu super nesse texto. Escreve um livro, por favor !

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    1. *------------------------*
      Fico MEGA feliz que tenha gostado!
      Esse é meu conto favorito... Acho que é o melhor que já escrevi até hoje. Ele foi inspirado em um "caso real", sabe?
      Basicamente eu estava trabalhando, começou a cair uma PUTA CHUVA e as paredes começaram a estralar. Tipo... Trabalhava no 13º andar do 3º bloco de um prédio cercado de outros prédios. Estava sozinha na sala e -juro- achei que ia morrer.
      Sentei em minha cadeira, respirei fundo e uma espécie da ~paz~ surgiu. Eu realmente achava que ia morrer (mesmo. foi tenso), mas não me desesperei. Em vez disso comecei a escrever um texto... Terminei o conto quando a chuva melhorou.

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