terça-feira, 8 de outubro de 2013

[conto] O Rio - Parte 2








Ele se levantou num pulo e olhou ao redor.
─ A pessoa não vai ficar aqui pra nos olhar, imbecil. ─disse Mariana─ Senta aí e fica quieto.
Ficamos um momento em silêncio.
─ Como podem nos chantagear? ─perguntei─ Vocês têm filhos? Dinheiro? Reputação?
Eu não tinha nada disso.
─ Bruno é vereador. ─disse Mariana─ Lúcio é...? O que você é mesmo?
─ Publicitário! Eu fiz a propaganda da pick-up azul, sabe?
─ e eu, ─disse Mariana─ abri um negócio lá na cidade. Um restaurante.
─ Ótimo. ─falei─ A pessoa quer dinheiro então. Preparem seus bolsos, meus amigos.
Dei mais um gole em minha bebida.
─ Tem mais uma coisa. ─disse Mariana.



Me preparei.
─ A cidade ganhou um delegado novo... O cara está super interessado nos casos antigos, em especial um corpo que foi encontrado certa vez... ─disse Lúcio─ Talvez seja ele.
Afundei as mãos nos meus cabelos. Tudo ao mesmo tempo? que droga!
─ Quem pode saber? Por que agora?
─ São boas perguntas. ─disse Bruno.
Nos olhamos um instante. Os flashes de anos atrás ecoavam na minha cabeça.
─ Talvez fosse melhor a gente se entregar... ─disse Bruno.
─ Diz isso porque não foi sua faca que atravessou a garganta de um homem. ─disse Lúcio num tom assustadoramente baixo.
─ Pelo menos dois de nós se salvariam. ─disse Bruno, com indiferença─ Eu e a Mariana não tivemos culpa.
─ Bruno, se você disser isso mais uma única vez, vou socar a sua carinha linda de vereador. ─ameaçou Lúcio─ Não vamos nos entregar e pronto.
Eu li novamente a mensagem de meu celular.
─ Não podemos rastrear as mensagens?
─ Já fizemos isso. São números que não existem. Simplesmente.
─ E então nós só esperamos? ─perguntei─ Qual é o plano?
─ Não temos plano.
─ Acredito que seja melhor vocês ficarem por aqui. Nossas famílias estão lá, não podemos levar isso para perto deles.
Todos concordaram.
─ Posso oferecer minha casa. É pequena, mas...
─ Não, não. ─disse Bruno─ Posso pagar um bom hotel para nós quatro. Vamos ficar juntos e confortáveis.
Acredito que ele não precisava fazer força para ser insuportável. Todos concordaram, então minha casa ficou para segundo plano. Fomos em dois carros e uma moto: o meu, um popular sem graça, cor prata.
Bruno tinha um sedan preto, lindo, todo-todo. Por um breve momento tive vontade de estourar o vidro do carro com um machado, mas Mariana estava com ele.
Lúcio tinha uma moto.
Chegamos ao hotel, guardamos os carros e fomos os quatro para o mesmo quarto. Haviam duas camas de casal, mas é claro que como quatro trintões, não dormiríamos juntos.
Eu me propus a dormir no chão e deixar minha cama para Mariana. Lúcio fez o mesmo pelo engomadinho. Levei minhas compras para dentro do quarto de hotel e comemos e bebemos tudo. Os ricos também comem mortadela quando sentem fome.
Anos antes eu pensava que Lúcio seria algum tipo de traficante. Para minha surpresa, ele era uma pessoa responsável. Bruno recebeu uma ligação e saiu para a varanda para conversar com sua secretária.
─ Rapazes, eu vou dormir. Boa noite.
Cobriu-se e deitou.
─ E então, meu velho amigo? ─disse Lúcio─ Depois de todo esse tempo, continua tão louco quando uma semana depois daquela noite?
Concordei com a cabeça.
─ Sabe... Não consigo mais beber cerveja. ─respondi.
Ele riu. Por um momento era o mesmo moleque que roubava cervejas do estoque do pai. E eu, o mesmo garoto que rasgou a garganta de um homem. Abaixei a cabeça e cocei a barba.
─ Eu não fiquei com muitos problemas não. É claro que às vezes me lembro, mas consigo tocar minha vida. Se você quiser, conheço um médico que pode te passar uns calmantes...
Neguei com a cabeça, por mais que precisasse. Tirei o celular do bolso e li novamente a mensagem.
─ Por que envolveram a Mariana e o Bruno nisso? Eles não fizeram nada...
─ Não nos denunciaram. São cúmplices.
─ Mesmo assim. É injusto.
─ Bruno é rico, é por ele que estão nos chantageando, tenha certeza.
Olhamos para fora. Bruno esbravejava no telefone. Minha antipatia por ele crescia.
─ E o que vamos fazer? Pagar pra pessoa e já era? ─ele perguntou.
─ É, acho que sim.
─ E vamos deixar alguém andando por aí com nosso segredo? E se essa pessoa voltar a nos chantagear?
─ O que sugere? Não podemos matar mais uma pessoa.
─ Por quê?
Olhei para ele espantado. Ele estava rindo. Estava brincando... Ou será que não? Mesmo que fosse brincadeira, ele não deveria ter dito aquilo. Fiquei inquieto.
─ Meu caro, vou descansar. Tenha uma boa noite.
Eu pergunto a você, pessoa que lê essas linhas: como diabos eu teria uma boa noite?! Puxei meu cobertor até o pescoço e virei para a parede. Ouvia a voz de Bruno.
─...remarque! Eu já te disse que não dá, estou com uns problemas pessoais. Ora, eu não quero saber. Peça a outra pessoa que faça isso por mim. Diga que estou doente, que alguém morreu, sei lá. Dê um jeito de adiar...
Fechei os olhos e os pesadelos chegaram.
Eu estava ajoelhado no chão, com folhas secas se quebrando a qualquer movimento. Reconheci o local. Era onde tudo tinha acontecido. Olhei para o lado, mas Lúcio não estava lá.
Não havia gritos, gemidos ou risadas. Não havia nem mesmo o barulho do rio. Apenas eu e o carro lá, abandonado. Me aproximei olhando ao redor nervosamente.
Ouvi um barulho vindo do porta-malas. Corri até ele, abri e uma mulher estava lá dentro, choramingando, com um saco preto na cabeça. Eu tirei o saco da cabeça dela e tomei um susto: era Mariana!
Eu a ajudei a sair do porta malas, tentei acalmá-la... No momento seguinte eu via dois meninos ali do lado, jogando um corpo morto no rio. Eram pequenos, magros... Eu e Lúcio.
O corpo não era tão gordo e nem tão velho quanto minhas memórias me mostravam. Era magro, cabelos negros encaracolados... Me aproximei e vi o rosto dele: era Bruno.
Acordei no meio da noite.
Um deles roncava alto. Me levantei, fui até a varanda  para respirar o ar da noite e dar uma espiada na lua. Estávamos no 15º andar. O último, eu acho. O mundo lá embaixo parecia tão longe... Deveria continuar lá, longe.
A varanda era maior que a cozinha do meu apartamento. Havia até mesmo um pequeno sofá, no qual eu me sentei e deixei o corpo relaxar uns instantes. Ouvi alguém fechando o vidro da varanda às minhas costas. Era Mariana.
─ Não consegue dormir?
─ Tive um pesadelo... Relativamente normal. ─sorri.
─ Eu também não estou conseguindo dormir.
Ela se sentou ao meu lado. Óh, uma garota se sentando ao meu lado! Algumas coisas não mudam.
─ Eu só queria saber quem ficou sabendo disso e guardou o segredo por tanto tempo. ─ela disse.
─ Não importa... Daremos um jeito nisso e pronto.
Ela colocou os pés no sofá e abraçou os joelhos.
─ Não pude deixar de ouvir a conversa entre você e o Lúcio... E se essa pessoa voltar a nos chantagear?
─ Não sei, Mariana... Não sei.
Ela abaixou os olhos, pensativa. Lembrei-me do sonho. Bruno era o vilão, ela era a vítima. Pensei em perguntar se eles estavam juntos... Mas fiquei quieto. Conversamos sobre vários assuntos naquela madrugada. Mariana era, além de linda, uma pessoa doce. E, além de doce, era extremamente atraente.
Uma hora e pouco depois ela decidiu voltar a dormir. Eu fiquei naquele sofá, olhando o céu escuro até cair no sono.
Acordei com o sol nascendo. Era uma imagem bonita, mas eu tinha sono. Cobri os olhos com o braço e voltei a dormir. Quando voltei a acordar, fui checar o horário no celular e me deparei com uma nova mensagem. Respirei fundo e li.
“Um milhão em dinheiro vivo ainda hoje. Passarei o endereço mais tarde”.
Ao menos era dinheiro o que queriam. Acordei os outros três e mostrei a eles a mensagem.
─ Como vamos arrumar UM MILHÃO? ─disse Bruno.
─ Quebre seu cofrinho. ─disse Lúcio.
─ Como se eu tivesse esse dinheiro todo assim, no bolso.
─ Talvez a gente possa fazer alguns empréstimos no banco. ─sugeriu Mariana.
Todos concordamos. O meu banco ficava ali perto, mas ainda estava fechado. Nós saímos do hotel e fomos tomar café em uma padaria. Comemos, bebemos café e ficamos esperando o banco abrir.
Após uma longa conversa com meu gerente, eu tinha cem mil em minha conta. Era o que eu podia. Os outros não abriram um grande sorriso quando disse isso. Era muito pouco.
O dinheiro estava em uma mochila nas minhas costas. A mochila deveria ter sido a sobra de algum brinde que o banco já teve, porque estava empoeirada e tinha o logotipo do banco bordado.
Deixei meu carro na rua de casa e fui de carona com Bruno e Mariana. Dormi metade do caminho e logo eu estava de volta à cidade onde cresci.
Estávamos em outra estrada... Imagino que Bruno tivesse evitado o local onde tudo aconteceu de propósito. Depois de tudo aquilo, eu nunca mais tinha mais passado por aquela estrada.
Chegamos à cidade e eu senti a densidade do ar mais leve. Ouvi pássaros... senti saudades da vida antiga. Cada um deles precisava ir ao seu respectivo banco, e eu decidi visitar meus pais.
Toquei a campainha enquanto olhava a janela do meu antigo quarto. Logo minha mãe apareceu na janela e deu um grito de alegria. Correu até o portão e me abraçou.
Me disse que eu estava alto e magro. Mas o que mais a incomodou foi a barba. Meu pai estava na sala e pulou do sofá quando me viu. Também me abraçou e disse que eu parecia um homem feito.
Parecia um homem feito? Por favor, pai! Matei um homem aos 15 anos!
Minha mãe preparou um café e pediu que eu contasse de minha vida. Contei as partes boas. Não queria meus pais preocupados com meu pequeno vício alcoólico, meu emprego chato ou apartamento minúsculo em que eu vivia.
Minha mãe insistia em dizer que faltava netos para ela, e meu pai dizia que faltava mulher. A verdade é que não faltam mulheres... Só que preciso pagá-las.
Fiquei com meus pais algumas horas. Logo os outros chegaram para me chamar. Eu me despedi e saí.
─ Conseguimos? ─perguntei.
─ Ainda falta 110 mil. ─disse Lúcio.
─ Sério?! Conseguimos tudo isso?! ─eu falei alarmado. Era muito dinheiro.
─ Sim. Como conseguimos 110 mil agora?
─ Podemos pedir emprestado para alguém. ─sugeriu Lúcio.
Em meia hora estávamos os quatro grudados em seus respectivos celulares, implorando para que nos emprestassem dinheiro. Mas existem pessoas que você não pode pedir dinheiro.
Os amigos do Governo de Bruno não podiam ajudar. Os comerciantes de Mariana também não. Meus clientes também não... E Lúcio... Bem... Ele já devia dinheiro pra meio mundo.
Duas horas da tarde conseguimos o valor. Nos dividimos para buscar as quantias com nossos amigos-agiotas. Os meus transferiram o dinheiro para minha conta, de modo que eu pude sacar no banco da cidade (indo até o gerente, claro).
Aquilo me daria uma baita dor de cabeça logo, logo. Ninguém tira esse dinheirão todo assim, do nada. Eu justifiquei dizendo que estava investindo em um novo negócio.
Os colegas de Mariana fizeram o mesmo. Ficamos os dois na cidade. Fomos até o restaurante dela e almoçamos por lá. Enquanto conversávamos, esqueci parcialmente do dinheiro que eu levava na mochila e da pessoa que nos chantageava. Esqueci também que eu era um assassino.
Talvez eu estivesse começando a gostar dela.
Esperamos, esperamos e esperamos. Começava a anoitecer quando meu celular recebeu mais uma mensagem.
“Deixem o dinheiro exatamente onde mataram aquele homem. Se faltar um centavo, coisas ruins vão acontecer”
Mostrei a mensagem para Mariana e ela respirou fundo. Algum tempo depois Lúcio e Bruno chegaram com maletas. Avisei a eles sobre a última mensagem e decidimos levar o dinheiro o quanto antes.
Fomos os quatro no mesmo carro. Lúcio colocou o dinheiro em uma única mala, organizado... Exatamente como nos filmes. Eu acho que nunca verei tantas notas de 100 juntas.
A mala foi fechada e logo chegamos ao local. Eu e Lúcio descemos. Senti como se o fantasma do estuprador estivesse nos observando, em silêncio.
O local havia mudado pouco. A estrada tinha sido reconstruída, havia uma pequena barreira entre a estrada e o rio... Nós pulamos com a maleta nas mãos e a deixamos ali, no chão.
Olhei para o rio e me lembrei daquela noite. Me aproximei do local e respirei fundo. Precisava superar aquilo. Me abaixei, peguei um punhado de terra e joguei na água. Eu esperava que, com o punhado de terra, meus problemas também se fossem.
Na verdade, era só para não perder o hábito de jogar coisas no rio.
Voltamos para o carro e abandonamos o dinheiro lá.
Ficamos os quatro no restaurante de Mariana até de noite. Todos sentados, com celulares em cima da mesa... A meia-noite chegou e passou.
─ Significa que acabou? ─perguntei.
Os outros concordaram com a cabeça. Senti um grande peso saindo de minhas costas. Então parei pra pensar na grande quantia que eu devia ao banco. Como eu pagaria aquilo?!
Lúcio se levantou.
─ Senhores e senhora, preciso ir. Foi um prazer revê-los. Vamos marcar um churrasco qualquer dia. Precisamos nos reencontrar em momentos mais calmos.
O celular de Bruno tocou. Todos nos assustamos. Ele olhou o visor:
─ É minha secretária.
─ Te ligando depois da meia noite? ─riu Lúcio batendo no ombro de Bruno─ Sei, sei... Boa noite.
Bruno atendeu o celular e se afastou de nós um instante. Voltou quase correndo, pegou as chaves do carro.
─ Também preciso ir. Estou com alguns problemas. Boa noite para vocês.
Eu me levantei. Era hora de ir. Mariana me encarou.
─ Você está sem carro. Não tem ônibus assim tão tarde.
Concordei.
─ Pode dormir na minha casa.
Aquela era uma posposta estranha. Mesmo assim considerei um favor entre velhos amigos, e nada mais. Fechamos o restaurante e fomos a pé para a casa dela. Morava relativamente perto.
Ela abriu a porta da sala, ascendeu as luzes. Entramos e ela tirou a jaqueta que usava. Estava um pouco frio lá fora.
─ Você vai voltar pra São Paulo amanhã de manhã, né? ─disse ela.
─ É... Sim.
─ É uma pena.
─ Por que?
Ela se conteve um segundo. Se aproximou de mim.
─ Sabe, sempre achei que se eu desse um tempo pra você... ─ela riu─ Talvez você tomasse uma atitude.
Por um momento eu não soube se eu estava entendendo errado ou se ela realmente queria que eu tomasse uma atitude. Minha resposta apareceu no segundo seguinte quando ela começou a abrir o cinto da minha calça.
Confesso que ela me pegou de surpresa. Mas também confesso que eu queria muito aquilo. Passei os braços em torno da cintura dela e comecei a beijá-la.
Percebi que desde os 15 anos eu esperava aquele momento. Empurrei-a para o sofá e ela sorriu. Bom, isso não é um conto pornográfico, então não vou narrar como foi nossa noite.
O que posso dizer é que foi uma noite realmente boa, devo admitir. Na manhã seguinte tive uma experiência que era nova para mim: a mulher com quem eu dormira ainda estava lá, deitada ao meu lado, babando no travesseiro.
Eu estiquei o braço sobre ela e puxei seu corpo para perto do meu. Dormi sentindo o cheiro dos cabelos dela. O cheiro também era novo. Nada de perfumes baratos, cheiro de cigarro e álcool. Não, não... Mariana tinha cheiro de... mel?
Não sei bem qual era o cheiro, mas era bom. Voltei a dormir, embriagado por aquela nova droga em que eu me viciara.
Quando acordei, corri a mão pela cama, mas ela não estava lá. Levantei, me vesti e saí do quarto. Senti cheiro de café. Cheguei à cozinha e ela estava lá, olhando o café sendo feito. Sorriu ao me ver.
─ Bom dia, Belo Adormecido.
A segurei pela cintura e a beijei o rosto. Ela sorriu ainda mais.
─ Vai voltar para São Paulo?
Passei a mão pela barba. Era uma proposta para que eu ficasse?
─ Sim. Mas posso voltar... Voltar para ficar. ─as palavras iam pulando da minha boca─ Para sempre, com você.
─ Promete que vai voltar pra mim?
─ Prometo.
Meu dia começou assim, falando besteira. Acho que o cheiro do cabelo dela deveria ter algum tipo de alucinógeno, porque em sã consciência, eu não sei se teria prometido aquilo.
Tomamos café, nos despedimos aos beijos e às risadas e então eu fui para o terminal de ônibus da cidade. De volta a São Paulo, eu estava em casa. Minha vontade era pedir as contas no emprego, mas lembrei-me da mega dívida que eu tinha no banco.

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